A Escrava Isaura e A Gatinha da Cracolândia: mais do mesmo

Monica Santana
3 min readJul 26, 2021
“A Gatinha da Cracolândia”
Lucélia Santos em Escrava Isaura

Bernardo Guimarães escreveu A Escrava Isaura lá no auge do Romantismo no Século XIX. Aquela história da menina, filha bastarda do senhor, clara, alvíssima. Tão clara que era injusto ela ser escravizada junto com os negros. Por ser clara, ela experimentava algumas situações de liberdade. Mas nem é sobre esse ponto que quero falar. Quero só lembrar que já no século XIX, o autor brasileiro escolheu falar dessa personagem quase branca para denunciar… (será que posso usar esse verbo?) o horror da escravidão. Caso a personagem fosse uma mulher retinta, o efeito não existiria. Tampouco a piedade, a injustiça, o encanto, a fragilidade. Seria alguém cumprindo a sina da sua gente, no lugar que lhe é devido.

Corta para Cracolândia de São Paulo, 2021. O Romantismo faleceu há 200 anos. Mas o eu vai mundo bem obrigado. Vivemos no tempo do espetáculo do eu, com suas selfies, autopromoções de si, construção de imagem e disputa de narrativa. Temos uma garota loira, com várias fotos nas redes sociais usando biquini, roupas super sexy. Ela trafica na Cracolândia, fatura muito bem obrigada e foi presa. Por ser loira, branca e esbanjar fetiche, foi apelidada “Gatinha da Cracolândia”. Ou alguma coisa parecida com isso.

Este não é um texto falando sobre a hipersexualização de seu corpo pelos portais de notícias, que montam uma personagem folhetinesca. Perfeita para o Supercine. Tampouco quero fazer uma investigação sobre o que levou essa garota ao tráfico. O que eu quero é estabelecer uma ponte entre ela e Escrava Isaura.

Tanto ela, quanto Isaura são mulheres brancas (ou fenotipicamente brancas) deslocadas do seu lugar de expectativa para a sociedade brasileira. Uma no Século XIX e outra no Século XXI. Trocássemos o tom de pele, não haveria nem romance lá, nem notícia aqui. Não haveria estranhamento. Nem piedade. Nem fragilidade ou fetiche. Haveria alguém cumprindo a sina de sua raça: a escravização ou a marginalidade.

Ela tem fotos nos portais. É chamada de jovem. Tem um perfil com hábitos de consumo e quanto fatura. Ela vira sujeito. Bem, como feminista que sou, poderia problematizar um pouco mais — inclusive, porque seu corpo é colocado sensual para engajar audiência, alimentar o desejo e a fantasia alheia. É inevitavelmente objetificada. E olha só, tem 36 mil seguidores no Instagram.

Mas não é sobre isso. É sobre uma constatação nada nova. Não há nenhum espanto, só a repetição: de que há um pacto tácito sobre lugares e funções a serem ocupadas racialmente. E não houve nenhum desmonte nesses lugares. Corpos negros aos milhares na cracolândia, doentes, explorados. Isso não é notícia. Ali não há jovens. Não há belos. Não há espanto. Tal qual não havia pieadade para Rosa, antagonista de Isaura. Preta retinta, indignada com as diferenças e regalias que a outra tinha.

Talvez por parecer como Rosa, as páginas do jornal me dão certo enguio. Esse texto não quer nada além de fazer esse paralelo entre os jornais e o Romance de Bernardo Guimarães. Esse texto não quer reivindicar humanidade para os corpos negros. A autora desse texto, mais parece com Rosa, e passado já tanto tempo, não acredito mais muito nesse projeto de humanidade nem que enquanto houver colonialidade, haja algum espanto sobre os abismos que distinguem as existências de pessoas pretas e pardas das dos brancos, com seus sobrenomes de muitas consoantes. Esse texto só quer constatar. É isso mesmo. E cheira a mofo.

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Monica Santana

Sou Multidisciplinar. Jornalista, performer, dramaturga, atriz. Educadora e Doutoranda em Artes Cênicas. Quatro planetas em Sagitário: Seta apontada para o Sol.