A bênção, Atotô

Monica Santana
2 min readAug 16, 2020

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16 de agosto. Dia de São Roque e São Lázaro e também aqui na Bahia, sincreticamente, reverencia-se Obaluaê. Mais um domingo estou dentro de um hospital ou clínica, variações sobre o mesmo tipo de espaço. À beira da cama de minha mãe. Enquanto escrevo, ouço sua respiração funda e o ronco baixinho do sono da tarde. Minha irmã envia fotos das velas acesas diante das imagens de ambas entidades, a católica e a afro-brasileira. Nós somos essa esquina. Nas mãos minha mãe leva o terço que fora de minha avó e perguntara-me a pouco se havia água em sua quartinha.

Agosto. Esse mês de Obaluaê, que circula entre nós.

Enquanto acaricio a cabeça de minha mãe, rogo para que ele lhe seja misericordioso. Que tenha piedade daquela sua filha. Rogo para que quando for chegada hora, Oyá Balé a conduza amorosamente. Que Nanã lhe apague as dores fundas da memória, restaure a conexão com os antepassados amorosos.

Rogo para que sua aldeia se abra para sua chegada, que lhe lave as últimas dores de um corpo cansado, cansado por demais. Que ela em retorno a aldeia possa celebrar tudo o que fez de bonito, tudo o que riu e fez rir, toda beleza que transformou em imagem, todo serviço que prestou amorosamente. Rogo para que sua aldeia de sete caboclos a receba em festa.

Enquanto lhe acaricio a cabeça de poucos cabelos, aqueles que nascem em resistência a tanto tóxico da quimioterapia, ela explica que antes o velho não deixava que ninguém lhe tocasse a cabeça. E ela não entende bem porque hoje ele deixa e ela passou a gostar. Se sente acarinhada. “Todos gostam de pegar em minha cabeça”.

Ouço seu ronco. E isso me alivia também. Ela está aqui. Está aqui. E lhe disse mais cedo que apesar de entender seus olhos tristes, sua pouca vontade de conversa, queria lhe pedir também para aproveitar pois: estamos juntas.

Mais um domingo.

Atotô, meu pai. Que seu Xaxará seque as feridas dessa sua filha devota. Que seu Xaxará seque as feridas de tantos e tantas nos leitos desse Brasil adoecido. Pai, Misericórdia desses filhos, muitos deles que não tem o privilégio que tenho, de poder me sentar do lado e segurar a mão de minha mãe. Misericórdia de nós todos, filhos dos seus filhos e filhas. Atotô, meu pai.

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Monica Santana

Sou Multidisciplinar. Jornalista, performer, dramaturga, atriz. Educadora e Doutoranda em Artes Cênicas. Quatro planetas em Sagitário: Seta apontada para o Sol.